quarta-feira, 8 de abril de 2020

A Pulseira

......Fulana, com socas de verniz preto, usava uma pulseira de ouro em redor da perna, junto ao tornozelo. Usava-se, estava na moda, pelo que não houve outro remédio senão comprar a dita cuja. Grossa, por sinal, não fosse passar despercebida a um olho mais desatento. O dispositivo transmitia um sinal de modernidade, mas também de riqueza. Sim, porque os outros sítios do corpo, os habituais, também estavam ornamentados com objetos auríferos. Havia que diversificar os espaços de decoração corporal. Balançava a perna, cruzada sobre a outra, deixando o pé descair um pouco da soca. Dava aspeto de pessoa de posses, desprendida, solta nos movimentos e nas palavras... Sempre se preocupou em vestir bem, não necessariamente muito elegante, mas bem, com roupas caras, de marca, e à moda, sim, sempre à moda. Nem que a moda fosse detestável. Mas era a moda, era assim.
------O diálogo passou-se num trio, ela, a Fulana, a Beltrana e a Sicrana. Era o caso de saldar uma dívida de  antecipação de uma mesada. Tratava-se de passar um cheque! Claro que o nível económico de ambas as partes era distinto, de um lado uma pobretana, do outro uma abastada. A Beltrana não tinha onde cair morta, não tinha dinheiro, só o que lhe foi dado pela segurança social e ao qual teve direito. Mas fez questão de agradecer a bondade da Fulana em lhe ter adiantado o dinheiro que precisara para sobreviver. E estava agradecida, e também convencida de que, dada a condição económica da Fulana, lhe seria recusado o cheque do seu livro a estrear. E sonhou o que faria com aquele dinheiro, que bem falta lhe fazia! Castelos no ar, claro, que, ao contrário das claras batidas que vão abatendo com o tempo, o castelo se desfez num ápice. Sim, o cheque era bem vindo, os filhos poderiam, um dia, precisar dele. E assim foi passado o cheque à ordem da Fulana, com todos os escudos a que tinha direito, por serem seus. Sim, seus e da sua família.
------A Sicrana assistiu a tudo quase calada, mas a conjeturar. Às vezes em tom ensurdecedor, de baixo. Era o que habitualmente fazia: falar para dentro de si, porque há muito tempo que percebera que o calado era o melhor, para todos.
------Sobreviveu, a Beltrana. Triste e melancólica, calcorreou trajetos, batendo aqui e acolá. Sem se magoar em demasia, e devagarinho, muito devagarinho, encontrou o seu trilho de vida.

À memória de um dia triste

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